quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

"Aparece lá em casa"


- Tchau Arnesto. Aparece lá em casa qualquer hora.

Mal o Arnesto dá as costas, ela se vira pro marido, irritada: - Por que você convidou ele pra ir em casa?

- Ah! sei lá, por educação eu acho. O que é que tem?

- Como assim "o que é que tem"? O cara é uma mala sem alça, uma caixa de papelão debaixo de chuva..

- Bem, tecnicamente eu não o "convidei" pra ir na nossa casa. Só disse pra ele aparecer. Modo de falar, sabe como é?

- E você não sabia que quando você diz pra um chato: "aparece lá em casa", ele aparece?

- Como aparece? Assim, do nada?

- É claro! Os chatos têm um poder, um dom (deve ser uma mutação, sei lá) que permite que eles se trasmutem de um lugar para outro no espaço imediatamente, de preferência pra onde menos façam questão da sua presença, de forma que possam incomodar de forma mais eficiente. Chatos em geral são carentes e acham que está todo mundo morrendo de vontade de ser visitado por eles. E eles aparecem nos piores momentos possíveis: quando você tá de saída, no telefone, com outras visitas...

- Na hora do jantar.

- O que?

- O Arnesto aparece na hora do jantar. O pessoal do trabalho vive comentando. Chamam ele de Arnesto "hora-da-janta".

- Não falei? O sujeito é chato. E do pior tipo: o que pensa que sabe tudo. Tem razão em qualquer conversa. Conhece tudo sobre todos os assuntos possíveis. E se não conhece, desvia sutilmente o assunto pra outro que ele domina (ou pensa que domina).

- É, talvez ele seja meio chatinho mesmo...

- É mala! Fora a mania de ficar encostando, pegando, cutucando.. Por que todo chato cutuca?

Ele faz cara de preocupado:

- Será que ele pensa a mesma coisa da gente?

Ela franze a testa:

- Claro que não! Você acha? Nós somos um casal tão legal. Pelo menos eu acho.

- Ah, mas nossa opinião não conta. Quero saber é dos outros? Vai ver eles também ficam falando de nós. Aposto que acham que você fala muito, ri alto demais...

- Eu falo muito? E você que reclama de tudo! E tá ficando com mania de cutucar quando conversa.

- Eu cutuco? Eu não.

- Aí viu, acabou de me cutucar.

- Você me provocou.

- Será que nós somos tão chatos assim?

- Sei lá, acho que sim. Já pensou se ninguém mais quiser sair com a gente? Se ninguém mais quiser aparecer lá em casa?

- Liga pro teu amigo Arnesto, diz pra ele ir jantar com a gente um dia desses.

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

O princípio

Sejam bem-vindos ao novo lar do Misantrópico Casmurro.

Enjoy it, but remember: I'm just trying, just trying...

terça-feira, 20 de setembro de 2005

"A internet é nossa"


Essa semana recebi de um amigo a notícia de que o Brasil ameaça criar uma espécie de internet paralela para combater a dependência tecnológica dos Estados Unidos.

Já pensou: como seria a internet brasileira?

Primeiro, o sujeito que quisesse ter um endereço de email teria que ir até uma agência da Caixa Econômica e esperar 4 horas na fila para pagar a TCEPF - Taxa de Cadastramento de Email Pessoa Física, de 12,76 UFIR's. Depois, com o protocolo em mãos, precisaria tirar 2 cópias autenticadas, deixar a via azul no INSS e carimbar a via laranja na Embratel - seção de novos emails (falar com Dona Vilma somente das 10h às 14h).

Se ele quisesse alugar um domínio para fazer um simples blog, precisaria de todo o procedimento acima (incluindo a taxa de aluguel de domínio de 56,81 UFIR's) e ainda uma Certidão Negativa de Débito do INSS, uma autorização da Prefeitura para "Averbação de Domínio Próprio em Rede IP Pública" e um registro na Receita Federal. Melhor seria um despachante tomar conta do processo já que teria que ser enviado à Brasilía para receber a assinatura do Ministro da Web. Os tramites para abertura de um novo site demorariam em torno de 3 meses (desde que não fosse em época de eleições).

Abrir um domínio não seria fácil, mas a maior dificuldade estaria em fechá-lo. Aí, a espera poderia levar até 7 anos, já que o cidadão teria que comprovar que não ultrapassou a marca de 250 hits por dia nem utilizou seu site para fins lucrativos. No caso de uma das duas hipóteses, seria cobrado o ISCSW - Imposto Sobre Comercialização de Sites Web. A princípio, o ISCSW em São Paulo seria de 22,5%, e na Bahia - graças ao incentivo fiscal de Antonio Carlos Magalhães - seria de apenas 12,4% para até 3.500 hits/dia, fazendo com que a maioria dos IP's do Brasil se localizassem no nordeste. De qualquer forma, se não quisesse esperar tanto tempo para fechar completamente o domínio, poderia dar uma gorjeta para o analista de suporte da Prefeitura que ele daria um jeitinho de agilizar as coisas.

Aliás, a internet brasileira não poderia usar um nome em inglês para definí-la pois isso iria contra o princípio de sua criação. O ideal seria usar um nome típico e que remetesse às origens nacionais como "Catimbolé-Uçu" (em Tupi - "Teia Grande"). A catimbolé-uçu teria de ter seu próprio protocolo, o TCP/PBC (Protocolo Brasileiro de Catimbolé-uçu) que seria compatível com o IP, mas cerca de quatro vezes mais lento.

Para fazer tamanha estrutura funcionar com eficácia, seria necessária a contratação de aproximadamente 32 mil funcionários através de concursos públicos fraudulentos. Teriam preferência os parentes de deputados e vereadores. Nesse total estão incluídos não apenas os técnicos, mas também as secretárias, motoristas, faxineiros, mecânicos de automóveis oficiais, sapateiros, costureiros, engraxates, etc. O piso salarial seria de R$ 2.564,87 e o teto seria de R$ 32.657,98 (para o Engraxate-Chefe). Ainda assim, frequentemente haveriam greves e aí, o serviço ficaria um pouco lento ("operação padrão"), atingindo cerca de 300 kbps em residências da periferia (muito abaixo dos 2.400 kps habituais).

Para facilitar a navegação seriam criados novos tipos de domínio:

.25m (para comércios da Rua 25 de Março)

.efigenia (para comércios da Rua Santa Efigênia)

.mensalão (para empresas de publicidade de campanha)

.fbm / .cv / .ada (para sites relacionados ao tráfico de drogas).

sexta-feira, 9 de setembro de 2005

A garantia

- Boa tarde. Esse é o setor de devoluções?

- Sim. Em que posso ajudar?

- Meu país tá quebrado. Queria tentar devolver ou pelo menos trocar por outro que funcione.

- Pois não. E qual país o senhor deseja devolver?

- Brasil.
- Só um momento, já vou verificar no sistema... Bahamas, Benim, ah sim, aqui está: Brasil. Sinto muito mas o prazo de garantia já expirou. Se não me engano esse país foi descoberto em 1500. A garantia venceu em 1822. Tinha que ter reclamado antes de proclamar independência.

- Mas como? O defeito é de fábrica. Já tava assim quando eu peguei. Tem que ter alguma maneira.

- É muito difícil, afinal já se passaram mais de 500 anos.

- Mas...

- O senhor ainda tem a etiqueta ou a nota fiscal?

- Não. Mas tem uma carta de Pero Vaz de Caminha. Deve estar lá em algum lugar. Acho que ele trabalhava aqui na época.

- Caminha... Ah sim! Era secretário do Sr. Cabral. Ótimo vendedor... foi pra área de marketing. Dizem que ele conseguia vender qualquer coisa.

- Olha, se não der pra devolver eu aceito troca por outro país.

- Tem alguma preferência?

- Pode ser Bélgica, Dinamarca... A Suíça é mais cara né?

- Humm, receio que só poderíamos trocar por outro país de terceiro mundo. Mas deixe ver com meu gerente.

(...)

- O gerente falou que dá pra trocar. Temos Angola, Moçambique, Irã e alguns países do leste europeu..

- Dá pra ficar com a República Tcheca?

- Depende? Qual o estado de conservação do seu país?

- Bem... tem muita coisa asfaltada, mas com muitos buracos. Às vezes caem algumas pontes. Mas ainda tem bastante área verde. Tivemos que destruir uma parte das florestas para fazer algumas benfeitorias. Ainda tem muitas praias novinhas em ótimo estado. Claro que sempre tem alguma coisinha pra fazer.. sabe como é né? crianças, torcidas organizadas, traficantes - sempre aprontando.

- Água, luz...?

- Água tem bastante. Tem alguns lugares em que ela ainda não chega, mas, pra vocês isso é fácinho de arrumar. Tem energia elétrica.. andou tendo uns apagões tempo atrás, mas parece que já resolveu.

- E tem bastante emprego?

- Bem... esse é um dos defeitos. Nunca tem pra todo mundo.

- Ah sim... E que outros defeitos está apresentando?

- Na verdade, desde o começo nunca funcionou direito. Os primeiros 200 anos, a gente quase nem usou, mas depois começou a aparecer um regime escravocrata aqui, um imperador mulherengo ali... Nos últimos cem anos, teve até ditadura, hiperinflação... Acabou ficando cheio de rachaduras e infiltrações.

- E no momento, continua apresentando problemas?

- A inflação baixou um pouco, mas agora tão aparecendo muitos casos de corrupção.

- Isso é normal nessa época do ano. Aparece mais em países em desenvolvimento.

- Não... você não está me entendendo. É muito. Não dá nem pra contar. Já tentei vários produtos contra corrupção - água sanitária, Veja, Época, impeachment... Mas nada funcionou. Continua aparecendo.

- É. Nesse caso, não poderei trocar pela República Tcheca. Mas acho que você vai gostar da República de Malauí. Tem uma vista ótima do Zimbábue...

quarta-feira, 27 de abril de 2005

A reunião


O chefe passa pela minha mesa, põe o dedo na testa como se lembrasse de algo:

- Precisamos falar com você.

Ai, ai. Balanço a cabeça concordando (fingindo que não fiquei aterrorizado). Faço um gesto como se fosse me levantar da cadeira em direção à sala da diretoria. Ah! A sala da diretoria! A única sala fechada do andar. Totalmente envidraçada. Sempre achei que isso é um recurso psicológico: impede que se ouçam os gritos de tortura, enquanto permite que vejam o suficiente para intimidar. O chefe completa:

- Só que não agora. Estou entrando em uma reunião. Daqui a pouco conversamos.

That's it. The game begins. Por que o ser humano sente esse mórbido prazer em deixar os outros na curiosidade? Preferem nos deixar na expectativa. A tática inquisitória funciona: mal o chefe vira as costas começo a roer as unhas (ou o que resta delas). Sinto litros de adrenalina (isso se mede em litros?) invadindo minha corrente sanquínea. Pessoalmente, sou adepto do "fala de uma vez". Isso de ficar marcando e remarcando reuniões pra falar sobre a sua vida acaba com o coração do sujeito. Acho que é por isso que ouvimos falar de tantos enfartos do miocárdio, crises de estresse, colapsos nervosos, queda de cabelo...

Na realidade, nem sei por que estou assustado... não tenho idéia do que vão falar. Ou tenho? Por algum motivo, meu corpo pressente perigo. Como o gato bobo do ditado famoso, também tenho medo de água fria. Pior: não consigo controlar meu cérebro que cisma em ficar imaginando coisas:

- Pode fechar a porta por favor? (Pra que fechar a porta? Já vi tudo. O pelotão de fuzilamento deve estar me esperando. A faxineira está a postos pra limpar o sangue que vai escorrer pelas vidraças. Por um momento tenho a impressão de ver uma corda pendurada no teto da sala de reuniões - não, não, é só um lustre).

Ele começa: - Bem ("bem" é um advérbio utilizado em situações nas quais não se sabe como iniciar a frase - geralmente mal sinal), estamos sendo obrigados pela diretoria a cortar alguns custos no departamento (em outras palavras: "você é um imbecil incompetente que não serve pra nós"). Você entende, não é? (claro que não). Estamos te transferindo para a Unidade de Santa Rizonha na Paraíba. Temos certeza de que lá você poderá ser mais útil (isto é: "você vai destruir aquela filial tosca assim como fez com a nossa"). Seu chefe será o Vicentão (ah! bom - é sempre motivador trabalhar com um psicopata em recuperação e...).

Seguro meu cérebro pelo rabo: "calma! não exagere. Você está imaginando coisas demais. É muito pessimista". Não sei se sou pessimista. Só acho que vai dar tudo errado. Aliás, assim me protejo: se tudo der certo estou no lucro, senão pelo menos minha previsão deu certo.

Mas os dois gomos do meu cérebro (o otimista e o pessimista) resolvem brigar entre si. Volto a imaginar coisas:

- Como você sabe, estamos cortando custos (meu cérebro ouviu tanto isso ultimamente que só se lembra dessa desculpa) e diminuindo o número de funcionários na empresa. Infelizmente você está sendo dispensado... blá, blá...

Dizem que quando um funcionário é demitido ele não escuta mais nada que o chefe diz desse ponto em diante. Portanto se o chefe quiser contar uma piada ou perguntar o resultado do jogo de ontem, tanto faz. É o que deve acontecer comigo. Tento achar um lado positivo: pensando bem, é melhor que trabalhar com o bisonho do Vicentão.

Ser demitido exige o cumprimento de algumas tradições. Por exemplo, tenho que me lembrar de ficar uns segundos paralisado, surpreso, como se não tivesse entendendo nada. Mesmo que esteja. Faz parte do ritual. Em seguida digo algo do tipo:

- Eu realmente não esperava isso agora (mentira nº 1). Mas tudo bem (mentira nº 2). Foi bom ter ficado esse tempo aqui com vocês (mentira nº 3).

Espere um pouco. Pode não ser nada disso! Tento segurar meu cérebro insano mais um pouco. "Não sei porque tanto pessimismo. Pense em outras hipóteses: um aumento, uma viagem a Europa com tudo pago com acompanhantes, um carro novo e abastecido... Tá bom. Menos, menos." O lado pessimista escuta uma voz:

- Como eu disse, precisamos conversar, mas surgiu uma outra reunião... Fica pra outro dia, ok? Não vou te segurar mais...

Como não vai me segurar mais? Agora que já estou amarrado a essa dúvida infernal? Como vou conseguir dormir essa noite? Sinto que meu coração está até batendo mais rápido... Ou é só impressão? Ambos os gomos do meu cérebro se unem para dizer o que pensam dessa situação: afinal, por que não dizem logo do que se trata? Quem eles pensam que eu sou? Olho para o meu chefe, reúno todas as minhas forças e digo:

- Não tem problema. Boa noite...

Acho que vou precisar de unhas postiças.