sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

Velho lar, doce lar

Parece que dessa vez eles tinham encontrado o lugar perfeito. Desde o casamento, pagavam o aluguel em dia, mas sempre guardavam um pouquinho todo mês pro dia em que teriam seu próprio cantinho. Agora tinham conseguido.

Fechado o negócio, era hora de começar a empacotar as coisas. Os dois estavam radiantes: a nova casa era ampla e espaçosa, bem arejada, decoração moderninha. Poderiam ter um cachorro (ou dois, quem sabe) e convidar quantas pessoas quisessem para visitá-los. Não viam a hora de se livrar daquela casinha alugada, apertada, daqueles móveis baratos...

Já com tudo devidamente encaixotado, ele puxou uma das gavetas do criado mudo só pra garantir que não tinha esquecido nada lá no fundo. Viu a pontinha de um papel brilhante atrás da gaveta; puxou-a com cuidado pra não rasgar - era uma fotografia meio empoeirada. Havia sido tirada uns quinze dias antes de se casarem. Ele se lembrou que nesse dia alguns parentes e amigos tinham ido até a casa recém-alugada ajudar na pintura. Afinal, recém casados mereciam uma casa arrumadinha. Tinha ido também um tio, daqueles do tipo "faz-tudo", fazer a ligação elétrica do chuveiro, da máquina de lavar (que ainda nem tinha chegado)... Por sinal, tudo novinho. Depois que terminou o dia, todo mundo estava exausto, mas continuavam lá sentados no chão imundo e respingado de tinta, jogando conversa fora.

Ele olhou a foto mais uma vez e viu lá no cantinho, um pedaço da parede que ainda não estava pintado, uma cor escura, horrível. Como era feia aquela casa! E eles tinham conseguido fazer dela um lugar tão aconchegante, tão alegre. Bons tempos...

Enquanto isso, ela olhava embaixo da pia, procurando por alguma panela perdida e acabou encontrando uma grelha e dois espetos. Tentou se lembrar de quem era aquilo. Tinham emprestado de uns amigos no dia em que completaram 2 anos de casados. Fizeram um churrasco na pequena lavanderia. Dentro da casa, os amigos se apertavam, alguns de pé, outros sentados no chão mesmo, mas ninguém parecia se importar muito com o desconforto. Se sentiam em casa. Lembrou-se de terem jogado baralho com outro casal depois que todos já tinham ido embora e que de tão cansados acabaram dormindo ali mesmo na sala, um no sofá e outro no puf.

Ela sorriu e colocou a grelha de canto pra não se esquecer de devolver. Ele enfiou a fotografia no bolso da calça e foi ajudar a carregar o restante da mundança. Mas por um momento, ambos pensaram em desistir de mudar e ficar ali. Só mais um pouquinho.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

"Branco ou dourado?"

As mulheres devem achar que os maridos são gênios da moda. Que eles estão na profissão errada, já que todos eles deveriam ser estilistas (só para constar: se eles realmente levassem jeito pra isso dificilmente seriam "maridos" - pelo menos não no sentido aceito pela comunidade). Deve ser isso, porque todas elas ao se arrumarem pra sair, têm o hábito curioso de perguntar ao marido:

- Você acha que essa saia combina com essa blusa?

A maioria dos maridos responde invariavelmente que sim, mesmo que a dita saia seja roxa com bolinhas azuis e a blusa tenha um babado pink do século XV cravado de lantejoulas coloridas. Isso porque eles sabem que qualquer que seja a resposta, ela já sabe exatamente o que ela vai vestir. Ela já passou as últimas três horas imaginando como ficaria cada roupa, sapato, cabelo, maquiagem e todas as 213.614 combinações possíveis. Por isso não surpreende que o gentil leitor indague: "Por que então, a minha senhora ainda insiste em me perguntar com qual saia ela fica melhor?".

Boa pergunta. Já no Egito antigo foram encontradas múmias de esposas de faraós com as mãos fechadas segurando algo que os arqueólogos imaginam ser duas túnicas diferentes, na direção do sarcófago real. Uma delas tinha até brincos diferentes em cada orelha. O mesmo se deu na chegada das caravelas de Portugal em nossas terras: relatos paralelos ao de Caminha afirmam terem presenciado índias com cara de bolacha perguntando ao cacique se deviam se pintar com o vermelho do urucum ou com o branco da tabatinga. O cacique acendia um cachimbo e apontava para a cor preferida. Elas sempre escolhiam a outra. (Aparentemente esse era o motivo dos caciques aceitarem trocar ouro, pedras preciosas, qualquer coisa... por um espelhinho).*

Esse ritual se repete há séculos. Antes de sair, a esposa, no seu estado pré-maquiagem, pergunta se a roupa ficaria melhor com o sapato branco ou com o dourado. Se você responder "branco", ela dirá: "Por que? Você não gosta do dourado?", o que levará a uma interminável sequencia de testes e experimentos com todos os pares de sapato possíveis. Psicólogos do mundo todo argumentam que isso é causado pela necessidade de ter uma segunda opinião, pela saudade da mãe, da irmã, da amiga, etc.

A solução encontrada por muitos foi continuar concordando, independentemente da pergunta. Veja um exemplo elucidativo:

- Com qual brinco você acha que eu devo ir? O pequeno ou o grande?

- Sim.

- Ah... eu também gosto mais do grande. Obrigada.

Para isso funcionar é necessário olhar fixamente para o objeto em questão e franzir a testa como se realmente se importasse (mesmo que o cérebro esteja pensando no jogo, nas contas ou na crise da ex-Iugoslávia).

De qualquer forma, sustento a tese de que homens não são os seres mais apropriados para esse tipo de questionamento. Em geral, nós temos apenas dois pares de sapato (o preto e o marrom), duas calças jeans (a velha e a nova), sete camisas (uma para cada dia da semana - sendo utilizadas na ordem em que forem dispostas nos cabides) e um cinto bicolor (daqueles que se usam dos dois lados - um para o sapato marrom outro para o preto).

A propósito, amável leitora, pode continuar perguntando. Nós bem que gostamos.


* Informações históricas de fontes não muito confiáveis, porém muito imaginativas.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

O barulhinho

9h31, oficina:

- Que barulhinho?

Cric, cric, cric.

- Esse ó... tá escutando? Parece um grilo, sei lá . Só faz quando piso no acelerador.

Cric, cric, cric.

- Faz o seguinte: deixa o carro aqui pra eu dar uma olhada e a noite você vem buscar.

- Olha lá, hein? Não vai trocar coisa que não precisa! Da outra vez, ficou uma fortuna.

- Pode deixar, seu Osvaldo. Qualquer coisa eu ligo pra avisar.

(...)

13h23, trabalho do Osvaldo:

- Alô, seu Osvaldo?

- Fala Pereira. Descobriu o que é aquele barulhinho?

- Então: eu tive que desmontar a junta do bólido pra verificar o cabeçote da clavícula e...

- Carro tem clavícula?

- Tem sim senhor. Duas. Uma pra cada cachaça da ventoinha. O senhor não sabia?

- Er.. ah sim, claro. Tinha me esquecido. Mas e aí?

- Bom, eu descobri que o anel de borracha que veda a clavícula tava meio ressecado. Tomei a liberdade de trocar pro senhor.

- E era isso que fazia aquele barulhinho?

- Acho que não era não. Mas desconfio que, se não é lá, deve ser na copa da cabeça da arruela central.

- Hmm... acha que fica pronto hoje?

- Claro que fica, doutor.

(...)

17h24, oficina:

- E aí? Já tá pronto?

- Se o senhor esperar só mais meia horinha eu fecho tudo.

(...)

20h56, ainda na oficina:

- Prontinho, doutor.

- E quanto ficou?

- Então, eu aproveitei que o carro tava aqui mesmo e já troquei as velas, o filtro de ar, a bomba de combustível, o óleo do carter, o abafador eletrostático, o rodamoinho da varicela, o...

- Mas eu não pedi pra me avisar antes?

- Sabe o que é, doutor? Se não troca essas coisinhas, esse carro ia te deixar na mão. Já imaginou, a patroa dirigindo a noite lá na marginal Tietê e o carro enguiça? Melhor prevenir...

- Mas quanto ficou tudo?

- Bom, tá tudo anotado aqui. As peças e a mão-de-obra.

- Pôxa, tudo isso? Mas não tem jeito né? Ia ter que trocar mesmo...

- Ah, ia sim doutor. Agora tá que nem novo. Ficou esse preço porque eu consegui um desconto muito bom. Tive que ir buscar essas peças do outro lado da cidade. Se o senhor achar melhor pode até fazer um cheque pro dia 10.

- Pelo menos o barulhinho parou?

- Barulhinho? Ah... olha, eu não escutei esse barulhinho mais não. Devia ser a porca da homocinética do joelho abdominal. Tava meio froxa, eu dei uma apertada...

(...)

21h10, dirigindo pra casa:

- Gente boa esse Pereira. Conseguiu até um desconto nas peças e já deu uma revis...

Cric, cric, cric...

sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

A família do barco (parte II)

Ele já tinha ouvido falar nessa história do barco. Dia desses até ia dar uma espiada na construção. Segundo ouvira, mais parecia uma enorme caixa; uma arca daquelas que as avós têm na beira da cama, daquelas de guardar coisas velhas, mas que consideramos valiosas demais pra deixar em qualquer canto. Pois era assim mesmo o "barcão". Quadrado, fechado em cima e com uma porta enorme na lateral. Nem parecia um barco e, pelo que diziam, se conseguisse boiar na água já fazia muito. Alguns que foram visitar a obra contavam que dentro tinha três andares e diversos estábulos.

O menino se lembrava de que uma vez a família do barco (já eram conhecidos como a "família do barco") fez uma visita à casa dele. Todos pareciam muito amigáveis. Se acomodaram na sala grande e conversaram por mais ou menos uma hora. De uma forma muito tranquila, explicaram porque contruir uma embarcação tão grande, já que eles estavam a centenas de milhas do oceano mais próximo. Falavam alguma coisa sobre o mundo estar muito ruim, cheio de violência e mencionaram uma tempestade. Eli ficou pensando se estavam falando do clima.

Aliás, pouco entendia do que diziam. Quando perguntava alguma coisa para os mais velhos, eles davam de ombros: "Não se preocupe. As coisas estão melhorando..."; lhe davam um doce de tâmaras (receita da bisavó de Eli - a princípio a receita usava figos, mas depois foi adaptada) e ele ficava tranquilo. Uma vez, perguntou para sua irmã mais velha o que ela achava da tal família do barco. Ela disse pra não perturbar - estava preparando as coisas pro seu casamento. Ela se casaria em duas semanas e finalmente arrumara alguém para ajudar a cuidar dos gêmeos.

Os pais também pareciam que não se importavam muito com a situação ruim, as notícias e muito menos com a "família do barco". Achavam até bom que as coisas estivessem assim, meio confusas, aí conseguiam ganhar um extra, escondendo debaixo das roupas algum dinheiro do Sr. Nabuco. "Todo mundo faz isso, ele nem vai perceber." - diziam - "Aliás, ele bem que merece - aquele safado!".

Mas naquele noite depois da visita da "família do barco", os pais de Eli ficaram pensativos: "Será que é aquele homem tem razão?". "Acho que não...bem, vai saber." - Os argumentos dele pelo menos eram bons.

Chegaram até a tocar no assunto no bate-papo com os vizinhos. Mas aí, acabaram tomando mais uma jarra de vinho, e depois mais uma - por fim acharam tudo aquilo muito rídiculo. Como alguém poderia acreditar numa bobagem dessas? Aliás, chegava a ser uma ofensa. E se um dos filhos deles acreditasse naquilo! Era melhor avisá-los pra evitar andar perto daquela família. Gente estranha...!

Passaram-se alguns meses e um bando de velhotas que vivia espionando a vida alheia viu que a porta do barco se tinha fechado. Alguém disse que viu um homem diferente, muito "grande", fechando a porta do barco por fora. E era sobre isso que conversavam os vizinhos de Eli.

Foi quando ele ouviu um estrondo, olhou pro céu, e viu uma nuvenzinha preta...



fim

A família do barco (parte I)


Raios de sol atingiam as pernas gordinhas do Eli enquanto ele brincava no montinho de areia em frente à sua casa com terraço (era a única casa com terraço da rua - todos morriam de inveja, mas os moradores da casa mesmo, só tinham usado o terraço umas poucas vezes).

Era uma casa grande, não tão grande como os pais do Eli gostariam, mas acima da média. Precisava de uma reforma, é verdade. Em cento e sete anos havia sido revestida (com uma espécie de betume misturado com argila) apenas quatro vezes sendo a última há uns 22 anos.

Via-se um jardim mal cuidado em frente a porta principal que dava para uma grande sala, iluminada por algumas janelas que davam para o lado oeste, ao fundo (de onde era possível ver o vale). Era nessa sala que aconteciam reuniões de família e onde se tomavam decisões importantes. Ultimamente ela só vinha sendo usada para festas e jantares que sempre acabavam em bebedeira e uma boa briga entre os parentes.

Do lado de fora, o jardim terminava em uma cerquinha feita com junco amarrado em feixes e uma pequena abertura que dava acesso ao passeio público. Atravessando-se a cerquinha, bem juntinho dela, havia um montinho de areia quente onde o menino brincava. Eli, que tinha acabado de fazer onze anos, gostava de se sujar na areia com alguns brinquedos rudimentares feitos por ele mesmo, embora seus pais já estivessem planejando colocá-lo pra trabalhar na lavoura do Sr. Nabuco. Precisavam ganhar uns trocados e pagar as dívidas.

Enquanto Eli enchia a pequena caixa de madeira com areia e cascalho, ouviu algumas vozes de pessoas conversando próximos à varanda vizinha. Falavam sobre a tal família que construiu um barco enorme:

- Gastaram uns sessenta anos nessa bobagem. Um absurdo!

- Soube que agora deram pra encher aquele barco com todo tipo de bichos e se fecharam lá dentro!

- Capaz até de pegarem alguma doença...


(continua...)